Paulo Bedaque

Por alguma coincidência geográfica ou por alguma força telúrica desconhecida, os países mais ricos e desenvolvidos encontram-se no hemisfério norte de nosso planeta. Estados Unidos, Canadá, os países ricos da Europa e o Japão, estão todos acima da linha do Equador. Inevitavelmente, acabamos por sofrer fortes influências culturais desses países que nos chegam de carona juntamente com as pressões econômicas. Termos como nortear (dar uma rumo às coisas) ou desnortear (perder o rumo certo) encontram suas origens nestas ascendências culturais impostas pelo poder econômico. Fosse o contrário, o hemisfério sul a ditar as regras da economia mundial, e talvez os povos dissessem sulear e dessulear, com os mesmos significados de nortear e desnortear. A comparação não é minha, mas do professor Márcio Campos da Unicamp que criou os termos ligados ao hemisfério sul e iniciava suas palestras sobre o tema usando um mapa mundi de cabeça par baixo. Aquele usado nas escolas de todo o mundo, mostra o hemisfério norte em cima e o sul embaixo, numa arbitrariedade sem justificativas nas ciências cartográficas. O “em cima” e o “embaixo” não passam de referenciais arbitrários que podem ser alternados conforme melhor nos convenha.

O leitor deve estar estranhando nossa introdução que não parece ter nenhuma ligação com o título escolhido. Mas tem. No mesmo pacote de imposições culturais e históricas tentam tirar do brasileiro Santos Dumont (e conseqüentemente de todos nós brasileiros e demais povos do sul) a façanha de ser o primeiro homem a voar com um aparelho mais-pesado-que-o-ar, no campo de Bagatelle em Paris no ano de 1906, diante de centenas de pessoas estupefadas. Sou um assíduo telespectador de canais da TV a cabo que veiculam documentários. Tais canais são, em geral, estrangeiros, vindo diretamente do norte, o que não é um problema a princípio, mas algumas coisas irritam profundamente. Uma delas é a comemoração por eles dos 100 anos de aviação em 2003. Na verdade eles fazem referência ao pretenso vôo dos irmãos Wright em terras americanas em 1903, sem testemunhas ou outras provas que os fizessem merecedores de tal honra. Se tal feito realmente ocorreu, eles teriam se antecipado em 3 anos ao vôo do 14-Bis de Santos Dumont. Mas as evidências mostram um outro quadro, pintado nas cores verde e amarelo. Acontece que quando os irmãos Wright se apresentaram publicamente em 1908, na Europa, seu avião só alcançava os ares após ser lançado por uma espécie de catapulta e não subia com recursos próprios como o famoso 14-BIS do brasileiro. Assim, ficou claro que, em 1903, os americanos não saíram do chão com sua máquina de voar, mas (se voaram) foram arremessados ao ar e planaram por algum tempo.

Quis o destino que uma conterrânea dos irmãos Wright, Nancy Winters, fosse a voz estrangeira ao nosso favor, quando, há alguns anos, escreveu um livro (Man Flies – The Story of Alberto Santos Dumont, Master of the Baloons) defendendo que o primeiro vôo de um mais-pesado-que-o-ar foi realizado por Santos Dumont em 1906. Em suas palavras “Na contracapa do livro, eu escrevi que Dumont foi aclamado na Europa, antes que se descobrisse que os Wright o haviam precedido. Eu não acredito mais nisso. Ele não foi precedido. Ele fez o vôo, o feito foi cronometrado, e todo o mundo ficou sabendo o que ele tinha feito. Ninguém tinha ouvido falar dos irmãos Wright, e eles apareceram depois do fato”.

“Daí a César o que é de César” é uma frase que vive na ponta da língua dos indignados. Que seja nossa também neste momento, o feito de Santos Dumont é de Santos Dumont e de ninguém mais, ainda que queiram nos empurrar goela abaixo versões que “dessuleiam” a verdadeira história.